quinta-feira, 14 de julho de 2011

O lado sombrio



Apesar do barulho ensurdecedor do motor, o silêncio tomou conta da viagem. Até a paisagem adquiriu um tom mais cinzento. Eu não tinha como evitar a continuidade da viagem, afinal, como cantava Belchior, eu era apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentas importantes e vindo do interior. Até parece que ele escreveu para mim. O lado sombrio da vida se revelava mais uma vez para mim e eu não conseguia assimilar e nem compreender a natureza desses acontecimentos. Sexo, em todos os sentidos, só teriam sentido para mim anos mais tarde. Aliás eu nem sabia que era sexo que estava rolando. Eu nem sabia que era vítima de pessoas inescrupulosas, não conhecia a palavra estupro ou abuso. Só sabia que não era algo bom, porque entrava num estado de melancolia profunda. Enfim, chegamos em São Paulo. Mas aí é outra história.

A face oculta



Viajar era bom demais. A longa viagem parecia não ter fim. Eu quase que podia sentir minha consciência se expandindo e todos aqueles carros, ônibus e caminhões em movimentação nas estradas me excitava. Tudo parecia bom demais e, as vezes, as aparências enganam. Geralmente aprendemos isso da pior forma possível. A ingenuidade é uma característica da adolescência, e nunca imaginamos o pior. Naquele tempo confiávamos nas pessoas, não era como hoje, onde as crianças praticamente vivem isoladas, aprisionada dentro de sus próprios lares. Não é para menos. Parece que tudo evolui para melhor, menos o coração do homem. Ao nos aproximarmos de São Paulo, viajamos pelo litoral, a certa altura da serra, Gerson encostou o caminhão no acostamento. Até aí nada de mais, já haviamos parado outras vezes. Durante o trajeto tecíamos longas conversas acerca de muitas coisas. Assunto era o que não faltava, entretanto, nessa parada seu olhar era diferente. Seu semblante havia mudado. Havia algo estranho no ar. Um calafrio percorreu minhas costas como que se eu adivinhasse que algo ruim estivesse prestes a acontecer. Ele começou a me tocar, acariciar meus ombros. A essas alturas eu já estava totalmente paralizado. Um turbilhão de pensamentos e lembranças agitavam minha mente. A coragem e a ousadia se foram. A alegria converteu-se em tristeza. Mais uma vez eu me tornara refém das circunstâncias. A euforia das conversas, as brincadeiras esfuziiantes já não eram mais. Tudo se calou. Minha alma se calou. A viagem, bem... Continuou.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Lembrança difícil - Parte II



Rita era uma mulher de meia idade carinhosa e aconchegante como minha mãe. Era minha tia e sempre me tratou muito bem, Gostava de ser cuidado por ela. Seu sorriso era cativante e suas conversas sempre alegres. e é claro que aos doze anos, na minha época, uma criança é totalmente ingênua e não tece conceitos de beleza erótica ou sensual da forma que acontece nos dias de hoje. Certo dia, ouvi Rita me chamar. Eu estava na sala, vendo televisão e corri para atendê-la. Parecia que a voz vinha do banheiro. Estranhei a porta aberta e o barulho de água caindo do chuveiro. Hesitei um pouco, sem saber o que fazer. Ela disse para eu entrar e meio sem jeito entrei e a vi nua na banheira, envolta em pouca espuma. Eu podia ver os seus seios e parte do seu corpo mergulhado. Começei a tremer. Ela me chamou para perto, me deu uma esponja na mão e pediu para que eu esfregasse suas costas. Eu tremia tanto que ela percebeu e segurando minhas mãos, as puxou para perto dos seus seios e junto comigo acariciava-se. Eu estava paralisado. Não falava e acho que nem mesmo pensava. Estava acontecendo de novo.

Lembrança difícil


Antes da viagem para São Paulo, uma lembrança surgiu no horizonte das minhas memórias. O que eu vou contar era para ser algo bom, do ponto de vista biológico e natural, mas foi muito ruim. Nessa época, aos doze anos, eu estudava fora e morava com meus tios em uma cidadezinha do interior do Paraná, bem provinciana. Já contei que minha vida sexual não começou muito bem, afinal um homem não planeja começar sendo estuprado por outro homem. Se para uma mulher, ser forçada ao ato sexual já provoca traumas muitas vezes irreversíveis, no universo masculino isso pesa ainda mais, pois o homem é defraudado naquilo em que ele mais atribui valor, a sua honra de macho, sua hombridade. Um conflito de identidade é imediatamente gerado após o abuso. A insegurança e a dúvida quanto a sua identidade sexual são os primeiros monstros a perseguir os abusados de forma geral. É claro que existem outras consequências que compromentem a vida dessas pessoas por anos a fio. Estou relembrando esse fato em minha vida para que se possa compreender o que estava para acontecer. Olha o destino me pregando uma peça mais uma vez.

Pé na estrada


Certo dia, amanheceu mais uma vez uma inquietude dentro de mim. Do nada, num repente, dedidi fazer uma grande viagem. Se bem que para mim, uma grande viagem poderia ser qualquer aventura nas cidades cinrcunvizinhas mas havia um plano em andamento. Um outro plano, que era muito mais do que podia imaginar a minha vã filosofia, desculpem-me o velho chavão. Era como se alguém estivesse manipulando as cordas do destino, e eu, como um marionete, cujos movimentos são orquestrados por outra pessoa e completamente alheio aos acontecimentos invisíveis que podem mudar o curso da nossa história, achei que aquela carona para São Paulo era a minha grande oportunidade. Era a primeira vez que eu ia viajar de caminhão. O caminhoneiro era um cara bem legal.
Não preciso nem dizer da expectativa e da ansiedade que me fez perder o sono por uma semana. O grande dia nunca chegava.

A fuga das lembranças



Engraçado. Nesta fase da minha vida não tenho muitas lembranças dos amigos, das conversas, das brincadeiras. Da infância e das boas lembranças algumas poucas, das ruins muitas. Gostava de brincar em beira de rios, subir em árvores, fazer cabanas. Talvez um dia fale mais sobre elas. Não é fácil lembrar de coisas ruins. Eu era um garoto travesso e arteiro como dizia mamãe. Papai quase nunca estava em casa - era vendedor viajante e capataz de fazenda - e quando estava gostava de rinha de galo, dos botecos e dos amigos pelos quais era muito considerado o Índio Véio como era conhecido. Eu morria de vontade de ir com ele mas ele nunca me levou. Na verdade nunca me pegou nem no colo e quando eu aprontava aquelas coisas de criança, ele pegava um balaústre, sabe aquelas ripas de madeira que se usa geralmente para fazer cercas, com um corte diagonal em uma das extremidades formando uma ponta? Então, era assim que ele me corrigia. Ficava horas de molho em uma bacia com água e sal para tirar as marcas e os vergões , não sei de onde mamãe tirou essa receita ou talvez ela nunca tenha apanhado assim. Só sei que doía muito. Tinha também o lado bom do papai. Ele fazia questão de dizer às pessoas que eu era um menino muito inteligente e de alguma forma isso compensava os maus tratos, acho. Gostava também do modo como se vestia, estilo boiadeiro, chapéu calças jeans surradas (não, ele não batia nas calças) laço e chicote. Não era só um estilo, ele era mesmo um boiadeiro. Nesse tempo ele era capataz de uma grande fazenda.

A ditadura




Verão de 1974. Viviámos ainda debaixo dos ventos tempestuosos da ditadura militar e certas coisas não podíamos fazer. No máximo podíamos pensar. Havia uma espécie de pressentimento no ar. Uma expressão estranha no semblante de todas as pessoas revelava a opressão e o temor dominantes na vida das pessoas do lugar. Algo ruim estava acontecendo. A liberdade, me parecia, perdera o seu brilho.
As conversas antes esfuziantes e alegres pelas esquinas e pelas ruas tornaram-se em mímicas silenciosas, quase sussurradas pelos becos e vielas da pequenina cidade onde eu crescia. Todos temiam algo que não sabíamos exatamente o que era.
Eu era apenas um adolescente, e como todos da minha geração, privado do direito a informação e ao conhecimento. Alienação é a palavra que cabe aqui. Um crime contra a dignidade humana. Não fossem os geraldos vandrés da vida, os caetanos, chicos e tantos outros heróis anônimos, tantos presos ou exilados, outros tantos mortos nos tempos da ditadura, o vazio e as marcas em minha vida seriam de proporções catastróficas. É como se eu tivesse queimado etapas ou saltado os degraus que constroem a alma e a escada da maturidade. Bem, não seria a primeira vez que as circunstâncias da vida conspiraravam contra mim.
Um rio belo e sinuoso entrecortava a vida de todos na cidadezinha. Um cheiro forte pairava no ar, típico da fábrica de papel instalada do outro lado do rio. Trabalhei lá como office-boy nesse ano. O bondinho era uma gostosa aventura diária pela manhã e ao entardecer.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Dois anos depois

Não me parecia muito tempo. Talvez eu nem tivesse a percepção da rapidez com que a vida passa. Dezenas de livros, como as aventuras instigantes de " O velho e o mar" de Ernest Hemingway, o encanto de "Longe é um lugar que não existe" de Richard Bach, "O Pequeno Príncipe" e " Terra dos Homens" de Saint-Exupéry, Carlos Castanheda e sua literatura xamânica, Dom Juan e suas feitiçarias, entre tantos outros, já faziam parte do meu imaginário. Experiências incomuns e assustadoras habitavam minhas memórias mais recentes, como um rio caudaloso deslizando sobre o leito esguio. Eu podia sentir. Havia um vasto oceano mais a frente onde desaguariam os anos seguintes da minha trajetória.Só não sabia o quão obscuros seriam. A adrenalina da existência não parava de irrigar minha alma. A intensidade das descobertas sugeriam um futuro de riqueza espiritual com a qual em jamais havia sonhado. Mas estava acontecendo. Era real.
Um dos primeiros livros que li entre doze e quatorze anos aguçou minha sede por aventuras e pelo desconhecido. As experiências de um feiticeiro mexicano com mescalina, droga extraída do cacto conhecido como peiote e usada em rituais religiosos, mexeu com minha curiosidade e acelerou minha imaginação.
Experimentar aquilo seria, definitivamente, o auge da minha busca. Uma força estranha me atraía para dentro do universo da magia. Havia alguma coisa do outro lado da vida e eu queria experimentar.

Um estranho poder


Como então observar além do que os olhos podem ver? Um mergulho na feitiçaria e na magia, talvez fosse um bom começo. Quem sabe eu encontraria lá as respostas que eu tanto procurava. A sede por aventuras e pelo sobrenatural estava apenas começando e a fome de conhecimento somadas as experiências que eu acabava de experimentar me fizeram cair de cabeça na longa estrada da busca espiritual. Eu precisava encontrar a verdade. Precisava estabelecer a minha verdade.
Um estranho poder começõu a se manifestar. Inicialmente eu não sabia o que estava acontecendo. Com o passar do tempo e descobri que havia uma força sobrenatural em meu olhar. Uma força como que subjugava pessoas e circunstâncias. Não se tratava de um olhar simplesmente sedutor, era mais do que isso. Um olhar quase fatal, que aprisionava os acontecimentos como que se eu pudesse manipular os acontecimentos à minha volta. A sensação que eu tinha era como que portas se abrindo nas regiões espirituais da minha vida. Era uma adolescência diferente, e marcada por momentos as vezes estranhos, difíceis e dolorosos, mas ao mesmo tempo novo, forte e fascinante. O poder me fazia sentir coisas incríveis.

O Observador


Lembro-me bem. Era um belo quadro pintado a óleo. Não me recordo quem era o artista, mas era realmenmte uma bela pintura que retratava um imenso bosque, quase uma floresta e bem ao centro, na paisagem, havia uma grande árvore cuja copa se elevava muito além das demais, destacando-a não somente pela altura mas pela presença forte e esguia, de um colorido esverdeado intenso e galhada singular. Uma estranha árvore em meio a centenas de milhares de outras. Comoi se fosse um teste, alguém me desafiava a enxergar algo oculto na paisagem. Numa fração de segundos, meus olhos percorreram o quadro e uma silhueta humana, parte do tronco e cabeça, se revelava pequenina oculta aos pés da grande árvore. Foi surpreendente a rapidez com que percebi a figura humana. Alguém disse que eu havia sido o mais rápido entre todos os que passaram por aquele teste. Que orgulho senti de mim mesmo.
Aumentar a capacidade de observação torno-se quase uma obsessão.
Começei uma intensa busca de situações, desafios, testes e tantas outras coisas com o único propósito de tornar-me um hábil observador.
Com o passar dos anos, o senso de observação tornou-se parte de mim de tal maneira que observar a vida em todos os seus aspectos e nuances fez de mim um especialista. Eu precisava experimentar a vida de todas as maneiras possíveis.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Encontro misterioso


Certas coisas na vida são cercadas de mistérios. Aos doze anos, mistério é um conceito ainda meio vago e meio assustador,como se fosse algo em construção. Os antigos, um tanto supersticiosos, faziam aquela cara de medo que nos amedrontava também, mas mesmo assim, o turbulento rio da aventura e da curiosidade pelo sobrenatural nascia nas entranhas profundas do meu ser. Minha alma navegava por suas águas escuras e revoltas.
No dia seguinte ao sonho do precipício, alguém que até hoje permanece envolto em mistério, me presenteou com um livro cujo introdução descrevia em detalhes a mesma cena que sonhei. Fiquei arrepiado. Não era possível que isto estivesse acontecendo. Li e reli não sei quantas vezes. Era simplesmente inacreditável. O intrigante é que eu nunca soube quem me deu o livro e agora eu estava totalmente atordoado, embasbacado. Minha pulsação devia estar a mil. Meu coração parecia que ia explodir. Era um misto de alegria, incredulidade, medo e sei mais lá o que. É claro que devorei o livro em pouquíssimos dias. Um novo mundo, extraordinário, abria suas portas para mim. A Iniciação, pensava eu, era um privilégio para poucos.

Um lugar sombrio. Quatro anos antes


Talvez não fosse um lugar propício para um garoto de oito anos brincar. Mas haviam outras crianças ali. Havia até um moço grande que devia ter uns trinta anos. Era o Júlio. Nós o conhecíamos bem e nos sentiamos seguros ali. Gostávamos de brincar de índio, de subir em árvores, de esconde-esconde. Coisas de crianças. Até quando ele me pegou no colo parecia brincadeira. Mas então ele tirou a minha roupa. Eu não sabia o que estava acontecendo. Vi quando ele abaixou suas calças e... Não quero mais falar sobre isso.
Sentia muita dor. Aquele lugar sombrio agora parecia estar dentro de mim. Fui para casa cabisbaixo. Chorava por dentro e não queria que ninguém percebesse. Eu só tinha oito anos.

Um ano antes


Era um dia como outro qualquer. Não havia nada interessante, além do silêncio sombrio da noite. Parecia que nada ira acontecer. A vida porém, dizia alguém, é uma caixinha de surpresas.
Aos doze anos, tudo o que resta para um adolescente é recolher-se, e lá pelas dez da noite, só podia ser pela imposição dos meus pais já estressados da correria do dia-a-dia. Nesta idade eu ainda não fazia a menor ideia do quanto a vida era difícil. Ainda alimentava meus sonhos de um futuro melhor, diferente da vida que minha família levava.
Lá pelas tantas, ferrei no sono. Começava aí um tempo novo de aventuras incríveis em minha vida. Nunca tive lembranças de sonhos, na verdade, nem sei se havia sonhado anteriormente, desta vez, porém, era diferente. Era um sonho bem real. Realismo que me fazia sentir coisas maravilhosas. Era como se um mundo novo se descortinasse bem diante dos meus olhos. Lá estava eu, parado diante de uma imensa pradaria, e eu começava a correr e correr e quanto mais eu corria mais velocidade eu atingia e num repentino salto, começava a voar.
Era uma sensação incrível. Jamais havia experimentado emoções tão fortes como voar de maneira tão real. Mergulhos rasantes eram minhas brincadeiras favoritas. Saltar do chão para a copada de uma árvore, dando mortais de costas e caindo em pé sobre a copa era demais. Uau, nenhum brinquedo poderia causar tamanha euforia. Durante um ano inteiro, todas as noites eu sonharia de novo o mesmo sonho.

sábado, 2 de julho de 2011

O Precipício

Era uma fria madrugada em 22 de junho de 1972. Um calafrio percorria minhas entranhas ao olhar para baixo e contemplar as minúsculas copas das árvores há pelo menos três quilômetros abaixo dos meus pés. Meu amigo não acreditava que pudéssemos estar à beira de um precipício tão alto e assustador. Os paredões rochosos expunham suas deformidades pontiagudas ao longo da encosta, ameaçadores, como que a esperar o momento de rasgar nossos corpos. Ele escondia-se atrás de mim dizendo que não conseguiria pular.
Eu tinha certeza que, se pulássemos, sairíamos num rasante espetacular por sobre a copa das árvores. Tanto mais eu insistia, mais ele negava-se a pular.
Determinado a saltar, num impulso eu disse: Sobe em minhas costas e agarre meu pescoço que eu garanto que vamos sair vivos dessa. Carlinhos simplesmente não acreditava no que acabava de ouvir. Era um proposta muito louca. Aquilo não estava acontecendo.
Finalmente, depois de muita insistência da minha parte, Carlinhos concordou em pular agarrado em minhas costas. Apavorado,mas concordou. Eu tremia, não de medo, mas de emoção. A adrenalina era liberada em meu cérebro como uma cachoeira que percorria todas as minhas vaias, e espalhava-se por todo o meu corpo. Parecia que eu estava usando uma droga muito poderosa, porém era apenas um sonho. O último de uma longa série de sonhos que precederam essa aventura espetacular.